terça-feira, 8 de novembro de 2016

Fomos criados para ser intolerantes


Fomos criados para ser intolerantes



Márcia Neves

Niterói, 08/11/2016.



O tema desse ano do Enem me fez remoer o meu tempo de escola. Se você perguntar para alguém da minha geração vão dizer, na grande maioria, que não havia intolerância religiosa. Todos comemoravam o Dia de Cosme e Damião na cidade do Rio de Janeiro em harmonia. Na virada do ano todos tomavam passe na Praia de Copacabana em paz. As pessoas podiam usar seus colares de contas sem medo pelas ruas e os terreiros não eram atacados. Católicos, espiritas, evangélicos, candomblecistas, umbandistas, budistas, judeus e outros viviam como uma bela família na cidade de São Sebastião. Não é? Mentira.



No meu tempo de escola a coisa não era aberta como agora. Não se ofendia a religião do colega abertamente. Os pastores não iam para a televisão quebrar imagens ou demonizar outras religiões. Não se formavam hordas para atacar fisicamente membros de outras religiões, até mesmo crianças, mas ainda assim havia a crueldade. A crueldade estava presente. Ela era sutil, muitas vezes nem tanto, mas estava presente todos os dias nos moldando. Nos tornando cidadãos “de bem”, devidamente institucionalizados e divididos em castas através da exclusão religiosa.



Eu estudei em um colégio tradicional católico, que era gerido por freiras rígidas quanto ao nosso comportamento. Quando vagávamos pelo corredor no horário da aula e a expectora nos pegava: -“O que estão fazendo, andando como um judeu errante? Quem é a sua professora?”. Se uma coleguinha de classe pisava em seu pé fosse por brincadeira, ou sem querer, nós dizíamos: - “O de baixo é meu, o de cima é do judeu”, ou a outra pessoa não sairia de cima do seu pé. São tantos os exemplos que não caberia nessa postagem, mas o melhor: éramos piedosamente orientadas a não “judiar” dos mais fracos. Câmara Cascudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro, se refere a judiar: “Como reminiscência religiosa permanece no espírito popular a figura do judeu como símbolo da malvadez absoluta, alegrando-se com o sofrimento alheio, egoísta, insensível, imperturbável de orgulho (…)”.



Pouco a pouco nossas mentes infantis eram moldadas através das expressões linguísticas. O poder do plano simbólico é imensurável. E quando se trata de religião a questão se torna ainda mais complexa, tamanha é a riqueza da fonte. A incrível crueldade está na sutileza. É como curvar a madeira, existem as técnicas mais simples, como mergulhar na água, e as mais complexas, como a torção de várias chapas. Mas o que importa mesmo é o resultado e o destino do uso. Porém, ah, o porém, o terrível porém...



Qual religião é a verdadeira? Existe uma religião verdadeira? Pois é, e para quem ainda está rodando no entorno do seu próprio umbigo, a pesquisa Major Religions of the World Ranked by Number of Adherents (Se você não a conhece, clique aqui) identificou que 2,5% da população mundial é constituída por ateus e por 12,7% de não-religiosos. A parcela dos “Nonreligius”, que abrange várias correntes (agnósticos, ateus, sem religião...), corresponde a 16% do planeta, com 1,1 bi e tende a crescer. Essa parcela só perde para o cristianismo, 2,1 bi,  islamismo, 1,5 bi. Com isso podemos concluir que: semear intolerância não rende bons resultados.



Márcia Moreira Neves

Jornalista e escritora - https://sites.google.com/site/marcianeves/

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