quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O meu corpo ainda não me pertence, talvez um dia.


O meu corpo ainda não me pertence, talvez um dia.



Márcia Neves

Niterói, 03/11/2016.



Meu corpo, minhas regras, uma falácia. Talvez na Islândia, ou na Noruega, ou quem sabe a Finlândia... Bom, Suécia e Irlanda também estão na lista. já que são considerados os países mais igualitários para mulheres e homens, mas aqui... Não, não mesmo. Esse artigo poderia ser sobre aborto, mas como não vivemos em um país laico de fato, cabe um post somente sobre esse tema: “O bem-estar da mulher brasileira, ou devo dizer, mal-estar”. Eu vou falar sobre a falsa sensação que temos de sermos donas das nossas ações. Não vou pegar pesado, vou dar pequenos exemplos, bem corriqueiros e de fácil degustação da minha própria vida, se é que podemos dizer que qualquer exemplo dessa natureza é leve ou de fácil degustação, mas comparados com outros...



Quando adolescente eu era a vadia do prédio em que morávamos. Só porque eu tinha amigos meninos. É isso mesmo, acreditem! Nós nos reuníamos na nossa casa depois da escola para estudar. Eu saia com eles para as festinhas no bairro e íamos ao cinema. Coisas inocentes, nada escandaloso, mas incomodava alguns vizinhos.



Aí eu cresci. Fui para a faculdade, comecei a trabalhar e sair à noite com as minhas amigas. Pronto, ganhei fama de sapatão no mesmo prédio. Se eu fosse, tudo bem! Mas eu não era. Chega a ser ridículo isso, mas é verdade...  Sabem por quê? Porque eu não queria saber de namorar ou noivar. Eu queria curtir a vida do meu jeito. Sair, viajar, estudar, trabalhar. Mas e se eu fosse homem, teriam me julgado? Bobinha eu, claro que não!



Roupa, nunca segui “tendências” da moda. Mas o pior sapo que engoli foi em uma determinada instituição financeira. Todos os colegas homens usando calça jeans e tênis. Penso: “Eu também posso”. Como fui inocente. Depois de uma semana usando jeans e tênis, mesmo sendo recorde em produtividade, sou chamada na sala do gerente geral. Motivo: vestimenta inadequada para atender o público. OI? E todos os colegas HOMENS? Era diferente, eles eram homens, eles podiam. Só me lembro de sair da sala da gerencia engolindo o choro de raiva.



Tenho a lembrança de um colega, na mesma instituição, mas em outra agência, que fedia absurdamente. Ninguém tinha a coragem de mandá-lo tomar banho. No dia em que cansei do cabelo longo e o cortei bem mais curto, uau! TODOS vieram me perguntar por que eu tinha feito aquela “monstruosidade”. Por que podiam acabar com a minha autoestima, mas com a do outro colega não? No caso dele era uma questão sanitária, no meu era uma escolha pessoal estética. Pessoal... Hum, até parece. Ingênua mais uma vez.



Aos 33 anos encontrei um companheiro, ou melhor, nos encontramos. De repente o mundo começou a cobrar filhos. No trabalho, fora do trabalho, na família: quando vocês vão ter filhos? Já planejaram os filhos? Essa era uma das melhores: vocês não podem ter filhos? E aí os filhos são para quando? Não tivemos filhos por escolha.  Mais de uma década depois, não nos perguntam mais. E aí uma surpresa, com o tempo os amigos com filhos se afastaram e os amigos sem filhos se aproximaram. Até então eu não sabia que havia uma separação. É, é assim que funcionam as coisas: divisões invisíveis que você nem sabia que existiam, mas que estão lá. E novas divisões significa novas barreiras a serem quebradas.



Desmontar normas estabelecidas, padrões considerados como os corretos, implica em sofrer penalidades. Um alto preço é cobrado. A liberdade de ser dona do seu próprio corpo não é de graça. Nós temos que estar preparadas. Mas ainda não é para a minha geração, pois são custos tão elevados, que temos que pagar de forma parcelada.



Márcia Moreira Neves – Jornalista e escritora - https://sites.google.com/site/marcianeves/

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